terça-feira, 24 de janeiro de 2017

• La mort de Louis XIV - o filme

Est-ce vraiment nécéssaire?”, perguntava o Rei-Sol, Louis XIV, a dada altura neste filme a que em boa ou má hora escolhi gastar o meu tempo indo assistir…

Acabava de lhe ser proposto um projecto para a construção duma ponte, algures no oeste da França. O arquitecto inglês que defendia esse projecto afirmava que esta dita ponte deveria ter uma fortificação em cada um dos seus extremos, para a segurança do acesso à travessia da mesma.

A coisa só por aqui já bem que começava a cheirar a esturro… Mas o principal mentor da urgência da construção desta ponte - um nobre que se presumia ser frequentador assíduo da corte do Rei-Sol e o responsável pela escolha daquele arquitecto inglês - ainda quis acrescentar mais um argumento para que o rei percebesse que havia uma janela de oportunidade para a feitura daquela obra.

Esse argumento não era mais do que isto: o fornecimento da pedra, matéria-prima para aquela obra, já estaria assegurada e a um preço barato. Só que era preciso transportar essa pedra do rio Nilo para França. E para esse custo adicional era premente desbloquear verbas, algo que só o Rei poderia fazer.

Ora, o Rei estava já na curva descendente dessa decadência que o haveria de conduzir em passo algo acelerado para o seu último suspiro. Mas ainda lhe restava alguma lucidez. E portanto, protelou a sua decisão final sobre o assunto.

E eu questiono-me e reparo… Que espantosa ironia!… Este filme quis expôr como é que acontece - sempre aconteceu… - assim tanto esbanjamento de fundos públicos. Mas para a feitura deste mesmo filme também alguém teve de convencer outro alguém a desbloquear fundos públicos!!!…

Eu abomino o ritmo cinematográfico frenético - às vezes a roçar a parvoíce - das grandes produções de Hollywood. Mas ritmos demasiado lentinhos também não me divertem nadinha.

Ok, vão-me dizer que aquilo é arte. Que tem de ser totalmente descomprometida com qualquer noção de entretenimento. Que não tem de entreter mas ser superior a nós todos.

Balelas!… Caca de boi*!… É que se fosse só as cenas e a sua interpretação pelos actores a arrastarem-se à velocidade de preguiças em suposta hibernação ainda vá que não vá!… O pior é que…

O pior é que 99% das cenas do filme passam-se sempre no mesmo cenário. O quarto onde o Rei mal se levanta da cama. Excepto a primeira cena, que é um exterior, como mostrado na foto ao lado.

E tudo é filmado com aquela iluminação bem fraquinha, bem pobre, que desperdiça todo o trabalho de guarda-roupa e caracterização de actores em que se terão investido horas e horas a fio para nada!… E como tempo é dinheiro… 

Mas em defesa da arte há que afirmar que isso é intencional. Para calar a crítica de qualquer ignorante como eu. Ou de inocentes miúdos que são os únicos a ver e no mesmo momento dizer que o Rei vai nu.

Enquanto me martirizava forçando-me a assistir a todo o filme, do princípio ao fim deste, só me vinha ao pensamento este desabafo: “Volta, Manoel de Oliveira, estás perdoado.”.

Eu mexo-me nos bastidores da sétima arte. Eu vejo como as coisas se passam. Eu vejo o desperdício constante de recursos e de talentos em façanhas tão vãs e efémeras.

Estou mesmo a ver técnicos de iluminação e fotografia a montar no décor inúmeras baterias de lâmpadas potentes, para depois esbater a sua luz a um mínimo, com carradas de filtros difusores. Why they put there so many light sources in the first place, I ask myself???…

Estou mesmo a ver a produção deste filme a arrendar espaços e mais espaços para as filmagens, para depois só se aproveitar na mistura final as cenas de um único set, quase exclusivamente.

Estou mesmo a ver exércitos de equipas técnicas e de figuração arregimentados para esta produção, para depois do sumo bem espremido não se aproveitar quase nada do esforço e do suor de todos e cada um destes.

Eu mesmo dei o meu tempo durante um dia inteiro e mais uma boa parte de outro para a feitura de um filme, de seu título “Zeus”. E a somar ao meu tempo há também o tempo de responsáveis pelo guarda-roupa e caracterização que se ocuparam afanosamente de mim. Para tudo isto se resumir à minha aparição durante um ou dois fugazes segundos. E vá lá, vá lá…

Também sou daqueles pretensos cinéfilos - ou cinerastas, como uma amiga minha diz - que assistem em sala aos filmes projectados até ao fim. Até ao final de todo o genérico e ficha técnica desenrolados. Até as luzes da sala estarem ligadas na máxima potência, convidando ao abandono do recinto.

Vejo sempre aquelas listas enormes de nomes que foram envolvidos na produção daquela peça da dita sétima arte e invariavelmente pergunto-me, como Louis XIV… Est-ce vraiment nécéssaire? Toda esta gente?… Não se podia ter dispensado o concurso de alguns deles, em nome de algum racionalismo? 

Era mesmo preciso ir comprar a pedra ao Nilo? E construir além da ponte duas fortificações?…

Quis-se fazer alguma coisa para comemorar os 300 anos da morte do Rei-Sol, o monarca que reinou durante mais anos uma nação grande da história universal como a França. E a montanha pariu este rato.

E são sempre assim, afinal, as empresas dos humanos. Caríssimas e vãs. Desde as faraónicas pirâmides do Egipto até ao magnifique cinema de autor premiado em Cannes. Como caríssimas e vãs foram também existências que depois glorificamos. Como a de Louis XIV. E de tantos outros que tais…

E já podíamos todos ter aprendido tanto, ao longo do caminho que a humanidade já percorreu… A pobreza e a miséria já podiam ter sido erradicadas. Como a varíola o foi.

Ocorrem-me agora mesmo - nem sei se bem a propósito, mas enfim, eu também digo que sou um artista... - as palavras de Eugénio de Andrade, no seu poema “Não é verdade”…

Não é verdade tanta loja de perfumes, 
não é verdade tanta rosa decepada, 
tanta ponte de fumo, tanta roupa escura, 
tanto relógio, tanta pomba assassinada.
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* Tradução literal do comum vocábulo “Bullshit”, tão empregado entre os yankees.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

• Obrigado

Acho que não me enganarei muito se disser que ele olharia com um sorriso a minha cidadania rasca…

Ontem fui ao Mosteiro dos Jerónimos ver o seu corpo em repouso. Já não entrava naquele claustro desde que era um teenager em visita de estudo. E ali ontem percebi que tenho de permitir mais amiúde que esses viajantes que até ali venho trazendo entrem e se sintam tão embasbacados como eu fiquei ao rever o lugar depois de tantos anos.

Com as suas cerimónias fúnebres antes da ida para o cemitério a terem lugar nos Jerónimos, ele deu-me, para além de outras mais essenciais, uma derradeira oferta. Que foi a de poder entrar naquele monumento tão visitado por forasteiros, sem pagar o balúrdio que a estes últimos - e aos nativos desta Olissipo, também… - exigimos.

No velório no antigo refeitório do mosteiro ele lá estava naquela pose dos grandes entre todos nós. Levou-me a pensar no momento que todos os povos têm o seu Mao Zedong. Ou o seu Kim Il-Sung. Ou o seu Enver Hoxha. O seu querido líder, enfim.

Só que ele não era dessa linhagem de chefes de estado. Era mais um Olof Palme. Ou um Nelson Mandela. Um bacano. Um gajo même fixe.

A ele devo o poder estar a escrever estas linhas sem recear o que a ele fizeram. Isto é, engaiolaram-no.

A mim isso só virá um dia a acontecer se isto ainda der um grande virote para trás. Mas eu acredito que vidas como a que ele viveu e nos mostrou como viver não permitirá que tal suceda jamais, doravante. É esse o seu grande legado para todos nós.

Obrigado, Mário. Descansa em paz agora, que creio que nós todos aprendemos a tua lição.