quarta-feira, 9 de março de 2016

• Marcelo

Como será natural num cidadão rasca, não sou chegado a cerimónias protocolares. Mas fiz questão de me obrigar a ver na pantalha a da tomada de posse do nosso novo presidente da república. Sobretudo porque era o último dia do cessante presidente. E para ficar com a certeza que não teremos uma outra múmia daqui por uns anos.

Julgo bem que não. Marcelo sempre foi bem diferente do outro, o figo seco. Não se deve deixar ficar fechado aos poucos na mesma redoma que o Cavaco se permitiu. É mais inteligente do que isso.

Depois de engolir a coisa pela tv, convenhamos que o nosso novo homem esteve bem no seu discurso de tomada de posse. Ou deu ao menos a ideia que sentia bem mais o que dizia.

Quando, por exemplo, nos jurou que irá ser um guardião permanente e escrupuloso da Constituição e dos seus valores, achou por ben realçar isto:

“O valor do respeito da dignidade da pessoa humana, antes do mais.

De pessoas de carne e osso. Que têm direito a serem livres,
mas que têm igual direito a uma sociedade em que não haja,
de modo dramaticamente persistente, dois milhões de pobres,
mais de meio milhão em risco de pobreza, e, ainda, chocantes diferenças entre grupos, regiões e classes sociais.

Salvaguardar a vida, a integridade física e espiritual, a liberdade
de pensamento, de crença e de expressão e o pluralismo
de opinião e de organização é um dever de todos nós.

Como é lutar por mais justiça social, que supõe efetiva criação
de riqueza, mas não se satisfaz com a contemplação dos números, quer chegar às pessoas e aos seus direitos e deveres.”

Como não podia deixar de ser, amei que fossem trazidos para dentro da Assembleia da República esses dois milhões de pobres, que ainda podem engordar mais em número.

E também a lembrança de algo que deveria ser um óbvio ululante mas nunca pareceu sê-lo para aqueles que se vêem hoje final e felizmente para todos nós, os outros, arredados das cadeiras do poder. Que não se deviam satisfazer com a contemplação dos números. 

Porque assim esses tontos pareciam tão simplesmente relegar as pessoas para segundo plano.

Julguei mais adiante neste bota-faladura que Marcelo também está e certamente continuará a estar atento áqueles - entre os quais eu me incluo - desvalidos cidadãos e suas duras vidas que as máquinas dos estados podem inadvertida e cegamente esmagar. Isso repassa quando fala de uma certa “mão invisível” nestas seguintes palavras:

“Dito de outra forma, o poder político democrático não deve impedir, nos seus excessos dirigistas, o dinamismo e o pluralismo de uma sociedade civil – tradicionalmente tão débil entre nós –, mas não pode demitir-se do seu papel definidor de regras, corretor de injustiças, penhor de níveis equitativos de bem-estar económico e social,
em particular, para aqueles que a mão invisível
apagou, subalternizou ou marginalizou.”

Mais tarde, não deu um puxão de orelhas a uma certa senhora que se gabou de ter feito com que os cofres do estado ficassem cheios. Porque a senhora em questão já tem uns abanos maiores do que a média da população portuguesa. E porque Marcelo não seria deselegante a esse ponto. Mas não se coibiu, para meu deleite, de afirmar isto:

“Temos, para tanto, de não esquecer, entre nós como na Europa
a que pertencemos, que, sem rigor e transparência financeira,
o risco de regresso ou de perpetuação das crises é dolorosamente maior, mas, por igual, que finanças sãs desacompanhadas de crescimento e emprego podem significar empobrecimento
e agravadas injustiças e conflitos sociais.”

No finalzinho do discurso, como não podia deixar de ser em Marcelo, quis mostrar-nos que é um homem que lê livros. E que lê os melhores pensadores sobre o que é isso que chamamos de Portugal. E agora passo a fazer uma citação elevada ao quadrado. Ou seja, vou citar Marcelo a citar Torga:

“O mundo não precisa hoje da nossa insuficiente técnica,
nem da nossa precária indústria, nem das nossas escassas
matérias-primas. Necessita da nossa cultura e da nossa vocação
para o abraçar cordialmente, como se ele fosse
o património natural de todos os homens.”
 - Miguel Torga

Isto devolve-me alguma renovada esperança em nós, portugueses, e em mim em particular. É que eu já não me sinto com valor para quase nada. Mas acho que ainda tenho uma boa dose de cultura geral. E sou bom em abraços, modéstia á parte.  ;-)

Bom, e agora é respirar de alívio, que o erro de casting dos últimos dez anos esfumou-se. E foi substituído com vantagens para todos. Boa ventura ajades porque vos ides e nos leixades, senhor Silva!…