quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

• Suis-je Charlie?...

"The moment you limit free speech it's no longer free speech"
 - Salman Rushdie

Finalmente, alguém disse tudo! E de uma forma clara como água.

Rushdie proclamou estas palavras hoje*, mais de uma semana depois da acção infeliz e estúpida de três ou quatro doidos** extremistas islâmicos que ceifou várias vidas cobardemente na redacção da revista satírica-humorística parisiense Charlie Hebdo… E as vozes a criticarem a postura de vida dos colaboradores desta revista que foram assassinados continuam a zumbir de uma forma ensurdecedora.

Para sintetizar o tom geral dessas críticas, pouco iluminadas a meu ver, vou citar o que disse no facebook um cidadão brasileiro, que presumo ser um bom católico: 

“Brincar com a fé das pessoas é piada de mal gosto. Todo mundo sabe que o Islã possui grupos radicais que estão dispostos a matar em nome de Alá. Os cartunistas foram avisados. É sempre lamentável falar da morte de alguém, mas foi uma morte anunciada. Sinto muito pelos inocentes, mas não se pode brincar com a fé das pessoas e achar que não haverá consequências.”

Quanto a mim, é absurdo o que se diz neste comentário. É evidente e bem sabido que nunca ninguém achou no Charlie Hebdo que não havia consequências. Todos eles nesta revista sofriam e os que restam vivos continuam a sofrer consequências dos seus actos. Porque eles viviam e vivem com um medo permanente. 

Medo dos muçulmanos, dos cristãos, dos judeus, dos políticos e de todos a quem eles incomodavam ou obrigavam as consciências a questionar-se. E sobretudo, claro, dos extremistas e obscurantistas de todas as cores e religiões. 

Estes humoristas não eram ingénuos, como os que os criticam querem supor. E para falarmos apenas de ameaças veladas em telefonemas anónimos, devem ter havido aos milhares por dia, ao longo de toda a existência do Charlie Hebdo. Mas esse medo não lhes terá feito dobrar a espinha dorsal.

Custou a vida a alguns deles mas morreram sem prostituírem os seus ideais face a quem eles criticavam. E já agora, temos de convir que o extremismo islâmico - ou o de toda outra qualquer fé religiosa - tem de ser criticado. E denunciado. Não pode ser uma coisa intocável. Senão alastra. Por causa dos dois infinitamente grandes de Einstein. 

Eu não seria capaz de ser tão mordaz quanto os cartoonistas do Charlie. E mesmo rasca como sou, também posso muito bem questionar o bom ou mau gosto das suas charges. Mas isso é o meu conceito pessoal de bom gosto. E cada um tem o seu. Mas isso não está nada em causa nesta querela pública.

O que essencialmente está em causa é que os nossos conceitos pessoais de bom gosto não devem ser os limites a impôr à liberdade de expressão! Primeiro, porque cada um tem os seus. E será difícil haver consensos universais acerca disso. Segundo, porque é perigoso sequer pensar em definir limites à liberdade de expressão! Não se sabe onde se vai parar com isso.

Eu não sou capaz de ser Charlie porque não iria tão longe quanto esta revista foi e vai continuar a ir com as suas farpas. E ainda menos teria a coragem destes cartoonistas. Aqueles que morreram vão fazer falta a este mundo. E por causa dessa falta que eles farão é que, por outro lado, je suis Charlie.

Outro cidadão brasileiro retorquiu a esta minha tomada de posição com isto, a seguir:

“Eles não brincaram apenas com as religiões, eles brincaram com suas vidas e com as vidas das pessoas que não tinham nada com o assunto. Muita gente morreu e pelas reações, muita gente ainda vai morrer. Valeu a pena????”

E eu concordei com este outro cidadão. Ele tem razão. Muita gente ainda vai morrer até que o obscurantismo tenha um fim, se alguém vez tiver. Se vale a pena estas mortes? Eu estou aqui pensando que nem a morte de Cristo na cruz deve ter valido a pena. 

A humanidade ainda não se emendou e nem foi salva como Jesus, o nosso salvador, aquele que por nós morreu queria. Afinal, continuamos nos destruindo uns aos outros.

E os caras do Charlie Hebdo não brincavam mas antes alertavam com sua sátira para essa insana auto-destruição e para a irracionalidade dos fanatismos religiosos. E não só mas também de algumas políticas hoje seguidas na sua França, na União Europeia e no mundo ocidental, dito civilizado. E para rematar este assunto, vou citar mais uma vez uma mente brilhante, tal como tão bem comecei. 

"Love is wise; hatred is foolish. In this world, which is getting more and more closely interconnected, we have to learn to tolerate each other, we have to learn to put up with the fact that some people say things that we don't like. We can only live together in that way. But if we are to live together, and not die together, we must learn a kind of charity and a kind of tolerance, which is absolutely vital to the continuation of human life on this planet.”
 - Bertrand Russell

Isto traduzido para um cartoon charliehebdomaníano, dá na capa que está ali um pouco acima…
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* Para ver um video com um excerto duma conferência em que Rushdie proclamou as palavras no topo deste post, clicar aqui.

** Digo doidos, porque antes de extremistas, estes tipos que executaram esta acção de represália contra o Charlie Hebdo são simplesmente uns insanos a quem o fascínio de deter uma arma de fogo e o poder de argumentação que esta lhes confere subiu à cabeça. Como acontece de uma maneira geral aos pobres de espírito.